O que é um doutorado? Nos últimos meses de redação deste documento me vi retornando a esta pergunta inúmeras vezes. Seria uma tese? Um conjunto de artigos publicados? Créditos por disciplinas concluídas? Foi nesse momento que parei para pensar no que fiz nesses anos e somente depois de lembrar o por que decidi fazer doutorado é que consegui me aproximar do que imagino ser uma resposta. Depois de me graduar em 2003 me associei a um instituto de pesquisas e – apesar de ter feito uma especialização na Inglaterra em 2006 – somente em 2007 ingressei no mestrado. Senti que passar um tempo fora da universidade, participando de iniciativas práticas focadas em conservação da biodiversidade me trouxeram uma perspectiva um pouco mais abrangente de atuação como pesquisador. Nesse intervalo tive a oportunidade de estudar e participar de muitos cursos e, assim, compensar algumas não poucas lacunas na minha formação durante a graduação.
O mestrado, em toda a sua intensidade, me trouxe reflexões importantes sobre o por que da pesquisa. Por que coletamos dados? O que fazer com eles? Por que ir para campo coletar dados é só a divertida ponta do iceberg da ciência (não tão divertido da água para baixo). Minha dissertação contestava alguns dos protocolos colocados em prática na pesquisa com felinos selvagens na época e, apesar de severamente contestada em alguns momentos, serviu de referência para a elaboração de desenhos amostrais em diversas iniciativas no país. Fiquei muito feliz em sentir que não seria apenas mais uma encadernação em capa dura arquivada em alguma biblioteca. Enquanto focava em dar continuidade as minhas iniciativas de pesquisa com jaguatiricas no Pontal do Paranapanema e em colaborar com outros grupos Brasil afora – empolgado com as aplicações práticas de meus estudos – uma importante transição acontecia. Os equipamentos para amostragens de fauna, antes restritos a projetos grandes com muito recurso, se tornaram mais acessíveis viabilizando novas iniciativas e amostragens em regiões pouco conhecidas. As abordagens analíticas, antes compartimentadas em softwares específicos, voltaram a raiz da revolução digital quando era necessário digitar linhas de comando com linguagem de programação até para abrir disquetes com 1.44 mb de memória. O desenvolvimento de pacotes analíticos utilizando linguagens de programação em ambientes de código aberto, associado a capacidades de processamento que fazem meu primeiro computador parecer uma calculadora científica, levaram a ecologia enquanto ciência para uma nova era. O céu se tornou o novo limite. Comecei a sentir que precisava me atualizar. Precisava de um momento de imersão na literatura, nas ferramentas e nas novas e cada vez mais sofisticadas linhas de pesquisa. Era hora de fazer doutorado.
No final de 2014 estava procurando uma casa para alugar em Goiânia, onde pretendia me mudar com minha família para iniciar esta nova etapa no PPG em Ciências Ambientais da UFG. Havia sido aprovado em primeiro lugar no processo seletivo com uma bolsa em meu nome. Meses antes havia procurado o Prof. Dr. Milton Ribeiro, que disse que só conversaríamos se o chamasse de Miltinho. Na época de minha primeira visita a Rio Claro, infelizmente Miltinho não tinha mais vagas para orientados. Um tempo depois, enquanto pesquisava por imobiliárias goianas na internet, recebi um e-mail de Miltinho intitulado “interessado no dout ainda?”. Fiz a prova sem nenhuma expectativa no dia 21 de Janeiro de 2015, exatos 15 dias depois do nascimento de meu primeiro filho. Passei e decidimos abandonar a idéia de ir para Goiânia. Mesmo tendo prometido a mim mesmo que nunca mais moraria em uma planície depois de 9 anos vivendo em Teodoro Sampaio – extremo oeste do estado de São Paulo – em Maio de 2015 estávamos morando em Rio Claro para avançar com o doutorado.
Foram 3 anos difíceis – principalmente para minha esposa – em uma cidade estranha, sem família ou amigos e um bebê. No entanto, entre todos os desafios típicos da rotina acadêmica, que a tanto tempo não faziam parte de minha vida, uma coisa que nunca pude me queixar foi o apoio incondicional de meu orientador. Em momentos de dificuldades pessoais, financeiras, morais, psicológicas, etc. nunca houve “tempo ruim”. Com muito carinho e empatia ele estava sempre lá. Mesmo diante de todas minhas limitações enquanto cientista, nunca pude reclamar dessa parceria e amizade. Sempre com um berimbal debaixo do braço, posso dizer que meu orientador de doutorado foi e é uma das pessoas mais importantes minha formação como ser humano, pai e pesquisador. Mesmo com a atual distância física, serei sempre seu aprendiz. Poderia redigir por horas sobre causos, aventuras, desventuras, aprendizados e mandingas que passei com Miltinho em não poucas viagens pelo Brasil e até no exterior. É com mais de uma lágrima que escrevo essas linhas enquanto lido com uma das maiores pandemias da história da humanidade e finalizo minha tese. Toda honra e toda glória a aquele que nunca se corrompeu pela ilusão dos pequenos poderes da hierarquia acadêmica. Obrigado Miltinho!
Nesse período em Rio Claro descobri uma paixão: o jiu-jitsu. Na década de 90 eu levava o video cassete da casa do meu avô para a casa de um amigo e lá copiavamos fitas VHS dos primeiros UFCs. Criado por Rorion Gracie em 1993, o objetivo do UFC era provar a superioridade do jiu-jitsu brasileiro sobre as outras artes marciais. Fazia isso por que meu tio praticamente me obrigava e achava muito chato um brasileiro com nome estranho (Royce) ficar mais de uma hora agarrado com um lutador no chão até que o “finalizasse”. Um dia passando na Rua 5 vi a academia dos Senseis Leandro Brassoloto e Ivan Andrade e parei lá para perguntar. Estava procurando uma atividade física e achei que podia ser interessante. Nessa época minha esposa estava redigindo sua tese de doutorado e eu ficava a maior parte do tempo cuidando do meu filho para que ela pudesse trabalhar. Descer a Av. 14 para o treino das 19:00 era meu ritual diário, meu momento. Durante uma hora e meia só existia o jiu-jitsu. Todas as angústias, dificuldades e ansiedades eram esquecidas. É muito difícil focar nessas coisas quando tem alguém tentando de estrangular. A camaradagem e bom humor no tatame, o bem estar físico e a autoconfiança que o jiu-jitsu me trouxe é o que me fez passar por este período sem me destruir psicologicamente. Agradeço de coração aos meus senseis e irmãos de tatame por me ajudarem a superar os desafios do doutorado. Oss
Quando cheguei no LEEC – Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação me senti no mínimo deslocado. Com 38 anos de idade, casado e com um filho me vi cercado de jovens incríveis, no leading edge da ecologia de paisagens e no auge de um grande projeto apoiado pela FAPESP em parceria com a Universidade de Helsinki. Aos poucos fui conhecendo as pessoas e processos. Fiz amigos com os quais criei laços invisíveis para a vida toda, embora distantes fisicamente hoje. Nada forja amizades e relações como por perrengues, desafios e batalhas juntos. São nos momentos de dificuldade e necessidade que caem as máscaras que todos nós vestimos diariamente para viver em sociedade e vemos quem é quem. Não foram poucos os desafios e batalhas e encontrei pessoas com códigos de conduta e ética impecáveis na vida pessoal, profissional e acadêmica, outras nem tanto mas mesmo assim tiveram algo a ensinar. Agradeço ao meu amigo Rafael (Urucum), seu jeitão rústico é só uma carapaça para os desavisados. Embaixo dessa casca grossa está uma das pessoas mais interessantes que tive o prazer de conhecer e conviver nos últimos anos. Agradeço a Renata Muylaert, companheira de não poucas batalhas e desafios. A Milene Eigenheer, a Erison Monteiro, a Natália Stefanini, Paula Montagnana, Cláudia Kanda e Julia Oshima pela amizade, parceria, troca de farpas e discussões sensacionais sobre todo tipo de coisa.
Agradeço a minha alma mater o IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas. O IPÊ abriu as portas para mim quando era um biólogo recém formado e ao mesmo tempo me abriu as portas para o mundo. Não tenho palavras para descrever a admiração e gratidão por toda a generosidade de Claudio e Suzana Pádua ao longo destes quase18 anos de convivência. Realmente não tenho palavras, estou há um bom tempo na frente do computador, mas não há formas de expressar o que gostaria através da linguagem escrita. Muito, muito obrigado! Agradeço aos meus amigos e mentores Clinton Jenkins e Alexandre Uezu. Uma das coisas que mais sinto falta no dia-a-dia é de tê-los por perto e poder conversar sobre cultura e ciência com essas mentes brilhantes. Agradeço a minha amiga Angela Pellin, por liderar pelo exemplo e me mostrar o estoicismo na prática. A toda equipe do projeto Desenvolvimento de novas tecnologias para avaliação dos serviços ambientais em programas de revegetação IPÊ-CTG, em especial a Williana Marin por todo carinho e atenção na preparação de nossas expedições relâmpagos. Parte desta tese foi viabilizada financeiramente por este projeto e muitos dos resultados dos dados coletados ainda trarão contribuições sobre as estratégias de conexão e padrões de recolonização da fauna em áreas de restauração. A querida Cristina – Tina – Tófoli, minha irmã de coração e toda a equipe do projeto Monitoramento Participativo da Biodiversidade IPÊ-ICMBio por renovar minha fé na conservação. A Fabiana Prado por me mostrar o que é liderança e colaboração na prática. Ao time de elite da 2ª Atualização das Áreas Prioritárias da Mata Atlântica IPÊ-MMA: Clinton Jenkins, Angela Pellin, Alexandre Uezu, Alexandre Martensen, Henrique Shirai e Neluce Soares. A equipe e projeto que tenho o maior orgulho e provilégio de ter participado. Agradeço a todo o staff do IPÊ por essa jornada em busca de um país mais sustentável. Em especial a Edu Ditt, Andrea Peçanha, Marcela Paolino, Patrícia Medici, Pollyana Lemos, Rafael Chiaravalloti, Simone Tenório, Paula Piccin e a meus irmãos de expedições: José Wilson e Cicinho (in memoriam).
Sempre tentei explicar meu trabalho para minha família, as vezes escrevendo, as vezes batendo papo. De fato, desde a graduação quando criei o fanzine “Drosophila” há 20 anos atrás, tento falar sobre ecologia e biologia escrevendo. Em 2016 iniciei uma coluna com alguns textos de relativo alcance, mas ainda insipientes. Nessa época, rabisquei em uma prancheta o esboço do que veio a se tornar o DesAbraçando Árvores, projeto lançado em 2018 focado em ecologia e biologia da conservação no formato podcast. De lá para cá posso dizer com tranquilidade que este o projeto mudou minha vida e minha carreira. Agradeço ao amigo e padrinho Fabiano Rodrigues de Melo e Rogério Cunha de Paula – meu irmão nerd – que abraçaram a idéia desde o início. A toda a família FIFA pelo suporte e a Paula Piccin, a querida Laís Duarte, a Fernanda Abra, ao maravilhoso Luiz Antônio Gambá, a Lays Parolin, ao Senhor A e a Hugo Fernandes meu eterno obrigado pela amizade e parceria nesse projeto maluco. Nunca imaginei que gravar tudo aquilo que antes fazia as pessoas me rotularem de chato se tornaria um movimento do bem, divulgando projetos e iniciativas importantes de conservação da biodiversidade e o mais importante: quebrando tabus e acabando com clichês. Agradeço de coração a cada pesquisador e pesquisadora, cada pessoa que passou pelo podcast e generosamente compartilhou sua jornada conosco e com nossos ouvintes. Esse projeto, por mais que desejássemos dar continuidade, não seria viável sem o apoio de um grupo muito especial de pessoas que se juntaram ao movimento e se dispuseram a contribuir com a causa. Obrigado pela confiança, apoio e também pelas críticas. Mas vale sempre a pena lembrar: não nos responsabilizamos por nada!
Agradeço a Ryan Holiday por me apresentar o estoicismo, ao imperador Marcus Aurelius por deixar suas meditações para a posteridade e a Jocko Willink (thanks for your service Sir). Agradeço aos autores Bernard Cornwell, Jim Corbett, Yuval Harari, Cal Newport, Jack Donovan, Dakota Meyer (thanks for your service), Nathan Lents, Matthew Walker, John Stryker Meyer (thanks for your service), John Plaster (thanks for your service), Sean Parnell (thanks for your service), Neil DeGrasse Tyson, Steven Novella, Stephen King, Michael Punke, Ken Follett e David Quammen por me ajudarem a mudar minha visão de mundo nesses últimos anos. Alexandre Ottoni (Joven Nerd), a Deive Pasos (Azaghal), e a Atila Iamarino meu muito obrigado pelas centenas de horas de companhia no Nerdcast.
A Miriam Perilli, minha cara metade, não há como expressar a gratidão por tudo o que vivemos nesses anos e nesta etapa de nossas vidas. Sua paciência, carinho, parceria e cumplicidade trazem sentido e direção a jornada. Esse ciclo se fecha para nós dois e que venham novos desafios! Obrigado por dividir sonhos, sorrisos e lágrimas. Por dividir a vida, o universo e tudo o mais. Aos pequenos Ian e Lis, por me ensinarem a valorizar o que realmente é importante.
Agradeço a minha tia-irmã Leá (tia Cotinha), sem a qual eu não teria feito nem graduação. A minha mãe e a minha querida irmã Cintia. Agradeço também a Dona Miriam Lages, Ana Luiza, Abraão, Maria Regina, Felipe e ao senhor Rômulo Perilli. Obrigado por me receberem de braços abertos na família.
Na reta final das análises e redação tive a ajuda de generosos amigos e cientistas incríveis que me estenderam a mão e tentaram contribuir de todas as formas possíveis. Obrigado Marcelo Magioli, Ronaldo Morato, Elildo Carvalho, Alexandre Martensen, Alexandre Uezu e Milene Eigenheer. Vocês são sensacionais! Desculpem não ter sido o melhor dos aprendizes, mas obrigado por tentarem!
Enfim, voltando a pergunta inicial, essa tese é apenas um fechamento de um processo de formação de um cientista. Li e estudei compulsivamente, elaborei e ministrei disciplinas, contribui com aulas em disciplinas em diversos estados do Brasil e do exterior, participei de discussões acadêmicas em disciplinas, coletei dados, organizei expedições, trabalhei com equipes incríveis, implodi equipes, abandonei equipes, acertei, errei, montei equipes, fechei parcerias nacionais e internacionais. Escrevi projetos de pesquisa, levantei recursos com agências de fomento, institutos de pesquisa e setor privado. Apresentei e discuti meu trabalho com cientistas, governantes, tomadores de decisão e empresários no Brasil e no exterior. Utilizei minha expertise prévia e novas ferramentas aprendidas durante o doutorado para contribuir com planos de ações de espécies ameaçadas, apresentei propostas de soluções para problemas práticos para grandes corporações internacionais e para o governo brasileiro. Mais tarde passei finais de semanas inteiros editando áudio tentando traduzir a importância disso para minha tia e para o público leigo. Colaborei com dezenas de grupos de pesquisa na redação, revisão e análise de dados em artigos publicados nesse período, outros já submetidos e alguns sendo preparados para submissão nesse exato momento. Passei a entender o doutorado como um processo de crescimento e atualização, de formação de um cientista capaz de pensar em questões teóricas e práticas relevantes para o avanço da ciência e da tecnologia, de fazer parcerias e levantar recursos que viabilizem isso, executar, analisar e reportar. Ser capaz de sintetizar seu conhecimento adquirido e passar adiante. Dificilmente conseguiria resumir esse processo de transformação pessoal e profissional em um documento. Como inúmeros colegas antes de mim, cheguei no final deste processo produzindo uma tese que não correspondeu aos meus anseios no início do processo. Muita coisa ficou para trás por que era ridiculamente inviável desde o início e meu orientador teve a sabedoria de me deixar aprender errando (e para largar de ser teimoso). Outras por falta de organização e outras simplesmente pela dinâmica da vida e mudanças que estão fora do nosso controle. Algumas etapas acabam aqui, algumas vou dar continuidade por que preciso e outras por que quero. Em relação a esta etapa de minha vida posso afirmar que, assim como Paulo, combati o bom combate e terminei minha jornada.
So long and thanks for all the fish!
Valar Dohaeris