Lembra da Tia Cotinha? Aquela sua tia do interior que você só vê no Natal? Então… dezembro está chegando. Quando a vir novamente, pergunte a ela o que significa defesa. Talvez você se surpreenda com a resposta. Assumindo que você já tenha tido algum tipo de convívio no mundo acadêmico, provavelmente esta palavra perdeu o seu verdadeiro significado para você.
Eu tenho um dicionário aqui em casa, mas é de quando eu estava no segundo grau. Nessa época farmácia era escrito com ph, além do quê quando abro ele tenho crise de rinite alérgica. Mas tenho dó de jogar fora. Enfim, vamos ver o como um dicionário online define:
Defesa
s.f.
Ação ou efeito de defender, de proteger: tomar a defesa do mais fraco.
Resistência a um ataque.
Medidas contra os ataques das armas inimigas: defesa antiaérea.
[Direito] Exposição dos fatos e produção de provas em favor de um réu.
[Zoologia] Cada um dos longos dentes caninos que se projetam para fora da boca de certos animais.
Órgão governamental que controla a produção e a aquisição de armamentos e outros recursos militares de um país.
Apresentação oral de tese ou dissertação, geralmente pública.
Olha que curioso como essa última definição parece destoar das anteriores. Se você concorda com a sentença anterior e acha a última definição é um caso a parte pense melhor. A defesa no mundo acadêmico é um rito de passagem. É análoga ao batismo, festa de debutantes, casamento… Não, peraí. É análoga ao ritual de passagem dos Sateré-Mawé, onde um curumim de 14 anos recebe uma luva preparada com formigas-tucandeiras. Essas formigas são conhecidas em inglês como bullet-ants, pois a dor de sua picada é considerada equivalente a receber um tiro de arma de fogo. O jovem Sateré-Mawé passa por este ritual diversas vezes até ser considerado um homem e enfim um guerreiro, enquanto isso na academia você deve passar por diversas defesas até ser considerado um ser-humano.
Na defesa o aspirante a ser-humano deve suportar o rigor de ser picado não por formigas, mas por seus pares. Após a defesa, o pobre recém pós-graduado ainda tem que fazer um social com sua família que veio do interior assistir o evento, na tentativa de entender o que é que ele fez esse tempo todo na Universidade. Infelizmente, na maioria das vezes eles voltam para casa sem a resposta que procuravam e chocados com o que aconteceu com seu ente querido.
Não achei com legenda em português, mas o vídeo abaixo ilustra bem este curioso processo:
Depois da defesa vão todos comer e beber. O coitado que acabou de passar pelo rito se esforça, mas está tão cansado que fica meio zumbi e não consegue dar atenção a todos. Numa dessas situações, saindo da defesa de um amigo fomos a um restaurante e enquanto o coitado agradecia sua mãe por não ter tentado defendê-lo durante a arguição e tentar explicar para sua família que aquilo que eles acabaram de ver era normal, eu conversava com um dos membros da banca. Esta conversa me marcou muito e aqui tento descrever mais ou menos.
O processo acadêmico é muito simples, dizia ele. Antes de entrar na universidade você é um jovem potencial. Você anda de bicicleta, sai com os amigos, escreve poema em guardanapos. Aí você entra na universidade e passa por um processo de bitolação – continuava o membro da banca. Começa a discutir política, se afasta da família, só convive com o pessoal da universidade e da república. A forja do processo é muita, muita cerveja. Ao final da graduação, se este processo não foi bem-sucedido, ou seja, o estudante ainda é um jovem potencial ele não está pronto para a pós-graduação.
O professor experiente está atento a isso. Se um estudante lhe procura para fazer mestrado e o professor percebe que ele ainda é um jovem potencial, significa que ele não está pronto para o mestrado. O professor – segundo o membro da banca, que obviamente é um professor mas optei por chamar assim – deve procurar alguns sinais. Se o aspirante ainda consegue conversar normalmente sobre coisas cotidianas quer dizer que não é bitolado o suficiente. Por outro lado, se o candidato não consegue falar de mais nada além de suas convicções e o que acha que quer fazer se repetindo de maneira evidente e levantando bandeiras através de camisetas de eventos quer dizer que está pronto.
Aí ele entra no segundo estágio da vida acadêmica. Ao longo do mestrado, dizia ele, o sujeito deve passar por um processo de neurose. Pelo ritmo intenso e prazos apertados a cerveja dá lugar ao café. A rotina intensa do laboratório, as cobranças do orientador, a competição “saudável” com os colegas devem fazer que o estudante sinta-se compelido a dormir pouco e ler compulsivamente. Ler apenas artigos científicos é claro. A partir do segundo ano é esperado que o estudante não consiga mais conversar com sua família. Ele deve contestar abertamente tudo que qualquer um fale nos encontros de família e se irrita facilmente por não conseguir se explicar quando é indagado:
Então você só estuda? Quando você vai começar a trabalhar?
A pressão, o isolamento dos amigos de infância e família, o visível cansaço das noites mal dormidas e o desespero com as análises de dados levam finalmente a tiques nervosos e queda no sistema imunológico. Bater o pé sem parar, falar compulsivamente pela constante overdose de cafeína… Micoses e alergias não são incomuns. Adeus relacionamentos afetivos…
Voilá! Este está pronto para o título de mestre em ciência! Se o estudante chega ao fim do mestrado e está muito tranquilo, tem vida social, lê livros de aventura, poesia e ficção por prazer e se dá bem com todo mundo quer dizer que tem algo errado. O professor precisa prestar atenção. Talvez ele precise de ser chamado para uma conversa para que se dê conta do que está em jogo e cogitar uma extensão de prazo. Em último caso o professor pode chegar a conclusão que o estudante deva ser convidado a ser feliz em outro lugar, afinal ali não é lugar para isso. Duvida desta visão? Um amigo uma vez me contou que foi parado enquanto andava no corredor assobiando durante seu mestrado ao norte do equador. O que o professor queria? Ele o parou para dizer seriamente:
You do not suppose to whistle, you do not suppose to be happy. You’re a grad student…
Enfim, continuava meu mais novo amigo na mesa, se o candidato conseguiu passar com sucesso pela graduação e mestrado, quer dizer na prática que concluiu as etapas e se tornou um neurótico bitolado. Este por fim é o pré-requisito para entrar no doutorado. No doutorado, com prazos maiores, o candidato mais escaldado agora acaba tendo condições de refletir sobre o que fez com sua vida. Após a correria do primeiro ano, começa a perceber que seus amigos de infância e irmãos/primos que escolheram seguir para o setor empresarial, privado ou se tornaram empreendedores independentes mesmo sem graduação já estão casados ou em relacionamentos estáveis, construindo suas casas, têm férias, 13º salário, plano de saúde… Enquanto nosso amigo doutorando, apesar de ser bilíngue – vai dizer que tá no doutorado sem falar inglês? – provavelmente com algumas experiências em outros países e em mais da metade do Brasil, ainda mora em república ou kitnet. A liberdade de viajar pelo mundo antes parecia compensar a ausência de grana. Participar de eventos, fazer estágio, “sanduíches”, parecem muito legais com todos que ficaram no Brasil achando lindo . Mas ninguém vê as noites solitárias, o isolamento cultural, o frio, a dificuldade da língua, a enorme pressão e finalmente a falta de “alguém especial” para compartilhar as lindas paisagens e pores-do-sol começam a colocar as coisas em perspectiva. Mais maduro agora consegue tempo para se relacionar, desde que o parceiro não seja muito grudento e não “atrapalhe”. Adora crianças, se orgulha de ser tio/tia, mas não acha que é o momento pois tem uma tese para escrever…
No final do doutorado, já consegue traquejo suficiente para convencer a família que o que faz na verdade é um trabalho apesar de ganhar uma bolsa ridícula. Nesta etapa, já próximo da defesa o estudante deve ser capaz de entender o que fez com sua vida e aceitar que se tornou um neurótico bitolado– segundo o tal membro da banca agora falando super alto depois de umas 4 cervejas e já com a atenção de toda a mesa:
Que finalment é o requisito para entrar na vida acadêmica: ser um neurótico bitolado, ter plena consciência e aceitar isso.
Precisa mesmo ser assim?
Costumo falar com minha cara metade: Love the game!
Temos que amar o jogo, amar o que fazemos. Mas o sistema não foi criado para ser amado. Por isso a escolha do programa e orientador é muito importante para que não nos tornemos neuróticos bitolados conscientes disso.
Tem dezenas de textos sobre isso na internet, com conselhos sobre estas escolhas, não vou me estender neles. Acho que são legais, mas a esta altura do campeonato, a minha experiência e a que colegas compartilham nos bastidores fez com que achasse estes textos muito superficiais. Muitas vezes eles são escritos por professores/orientadores descrevendo o aluno dos seus sonhos. Me atenho aos seguintes:
– Não saia direto da graduação para o mestrado, nem do mestrado direto para o doutorado
Para trabalhar com conservação e ser capaz de perceber a sociedade como um todo a pior coisa é reduzir o seu universo a academia. Tente passar um tempo no setor privado, terceiro setor, órgãos governamentais – sejam federais, municipais ou estaduais. Visite o maior número de instituições que puder e tente ficar tempo suficiente para conhecer os problemas. Desconfie de tudo que parece lindo e harmonioso a primeira vista.
– Não fique no mesmo programa a vida inteira
Não fique no mesmo programa toda a sua vida acadêmica, saia da sua zona de conforto. Procure outras pessoas, outros programas, outros estados, outros países.
– Antes de conversar com um potencial orientador, converse com o maior número possível de EX-alunos/EX-orientados
Isso é super clichê. Mas a minha sugestão é: tome um porre uma cerveja com essas pessoas ou, caso não beba, vá para algum ambiente que permita que a pessoa se abra com você sobre a verdade da rotina do programa. Tente conhecer melhor estas pessoas fora do círculo acadêmico. Mas tem que filtrar o que é pessoal do que é profissional. Algumas pessoas podem não se dar bem com o orientador por questões pessoais e isso não tem remédio… Por isso é importante conversar com várias pessoas.
– Veja o que os ex-orientados, ex-alunos do programa estão fazendo da vida
A maioria desistiu da vida acadêmica e foi vender arte na praia? Estão formando pessoas? Foram trabalhar na academia? Trabalham com conservação? Isso diz muito sobre o perfil do orientador e do programa.
– Qual o SEU perfil?
Existem formas diferentes de aprender e formas diferentes de ensinar. Tem pais que adotam a pedagogia de pegar pela mão e fazer para mostrar como é, tem pais que preferem só garantir que a criança não se machuque e deixa que ela tente resolver as coisas do seu jeito.
Você precisa de muita orientação? Não se sente seguro na hora de tomar decisões? Precisa de ter feedback do orientador o tempo todo? Não procure um orientador que tem reputação de mestre-dos-magos. Aquele de aparece do nada e some do mesmo jeito. Este perfil é muito bom para que já é mais safo e precisa da liberdade que ele dá. Gosta de fazer as coisas do seu jeito? Fuja do cara que tem fama de controlar tudo e todos.
Enfim, algo que não vejo muita gente discutir abertamente:
Isso é para você? Seja sincero. Não espere a coisa ficar insuportável para se perguntar isso. Não tem problema nenhum se não for. Qual o problema? Pós-graduação é para quem quer seguir carreira acadêmica. Se você não se vê orientando estudantes, ministrando disciplinas, seminários, participando de reuniões de departamento e publicando artigos no futuro, para que se submeter a isso? Existem exceções, há vários institutos e órgãos governamentais fora da academia onde é interessante ter mestrado/doutorado. No entanto as opções são bem limitadas e o mercado muito competitivo.
Você não é obrigado a fazer mestrado/doutorado!
Não faça só porque gosta muito do orientador ou pior: só por causa da bolsa. Suas opções são muito maiores do que imagina, a vida é muito maior. E ela existe fora da academia, acredite! Faça por que quer fazer, porque é importante para você. Love the game!
Seja sincero consigo mesmo, para quê passar 2 anos do mestrado, 4 no doutorado e talvez até seguir para um pós-doc para depois sair prestando concurso para tudo que aparece e ir trabalhar em algo nada a ver com o que queria? Quer isso, mas não quer algo acadêmico? Procure um MBA, um mestrado profissional.
Você pode ser a diferença em iniciativas com uma abordagem mais aplicada! Olhe a sua volta, a academia é uma parcela importante, porém pequena da sociedade. Por favor, não me entenda mal, vou sair do doutorado com 41 anos de idade (I love the game!), minha intenção não é criticar a academia. Apenas precisamos ter plena consciência que a sociedade precisa de pessoas inteligentes e inspiradas em todos os setores!
Você pode ser um de agente de mudanças super inspirado gerando soluções criativas para a crise ambiental em outros setores ao invés de um acadêmico desmotivado!
Se optou por isso, seja a mudança que quer ver no sistema ao invés de criticá-lo. Crie filtros, lembre-se de sua família, tenha amigos fora da universidade, pratique esportes, leia por prazer, dê um espaço para o seu coração: a vida é muito mais!
Continue assobiando pelos corredores!
… and love the game!
[pH]